quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

No começo do caminhho

Ilustre leitor,

Que frio da bobônica!!! Hoje é dia 29 de dezembro, 11:50h da manhã, e estou na sede da CECOEDCON, ONG para qual trabalho. Preciso fazer esta introdução para iniciar o relato a seguir, que envolve o clima, o trampo e um jantar fabuloso, feito na laje da casa de um amigo.

Cheguei um pouco atrasado, pois acordei com uma dorzinha de garganta safada e uma febre chatinha. Tudo isso é resultado de um costume bem brasileiro: tomar banho antes de dormir. Aqui deve ser o lugar mais frio do mundo (acho que perde pra Triunfo. Bairrista, eu? Imagina). Quando voltei do regabofe de ontem, nossa casa estava sem água quente, mas como havia passado o dia todo fazendo trabalho de campo e depois fui conhecer o lar de alguns compadres, me sentia um pouco IMUNDO para deitar na minha cama. A temperatura estava por volta dos 11º (isso quer dizer que, para fazer um xixi, é necessário chamar o pinto tal qual fazemos com um cachorro, de outro modo, você não acha o bonitão) quando comecei a me banhar. Não precisa me xingar, já fiz isso ontem, após o primeiro pingo atingir minhas costas, fiz hoje e continuo fazendo até agora. O banho é um caso a parte, com uma cuia, porque, na casa, só as meninas tem chuveiro e BANHEIRA. Os cuecas usam balde e caneca para lavar o corpo. DIGAÍ! Mas isso é compreensível, pois a seca em Jaipur é violenta, então tomar banho assim evita o desperdício de água. Conforme expliquei acima, acordei doente e só cheguei ao escritório depois de me certificar que não estava mais febril. Vim trabalhar, pois o meu tempo de estada é muito curto, logo devo utilizá-loao máximo. Aproveitando este parágrafo, informo que não lhe enviei uma correspondência ontem por causa da correria, visto que passei o dia na rua.

Findada a explanação, posso contar como é minha labuta e quão INCRÍVEL foi minha jornada no dia 28 de dezembro.

Trabalho na CECOEDCON, uma organização não-governamental fundada, há 29 anos, pelo Sr. Sharad Joshi, uma pessoa estrogonoficamente altruísta e um advogado cuja reputação alcança todo o país (Estamos falando de Índia, meu querido, isso quer dizer que o rapaz tira uma ondinha pesada!). Entre outros feitos extraordinários, a CECO (vou tratá-la carinhosamente por esse apelido) promoveu mudanças significativas na vida de mais de 400.000 pessoas, oriundas basicamente de comunidades marginalizadas. Diferentemente de caridade, o objetivo central das nossas ações é ressaltar as capacidades e a autoconfiança de quem nunca recebeu nada além de preconceito e muito, mas muito mesmo, sofrimento. Minha supervisora, Jayashree, é o que chamamos, no Brasil, de coisa linda. Formada e pós-graduada em ciências sociais, é um poço de compreensão e competência. Além dela, mais seis pessoas trabalham diretamente comigo, incluindo meu borther Jay, um amigo de quem vou falar logo menos, na sequência. O núcleo da organização é formado por trinta pessoas, desde professores universitários a juízes da suprema corte já aposentados. Contudo, por volta de 150 indivíduos fazem desse lugar uma das mais renomadas instituições de direitos humanos na Índia. Meu orgulho por fazer parte desse time é do tamanho do meu bairrismo, ou seja, incomensurável.

Agora que você já conhece um pouco mais o lugar onde passo a maior parte do dia, gostaria de falar-lhe sobre as atividades em si. Ontem, eu, Lee, uma australiana FIGURAÇA, e Depa, outra fofinha da equipe, fomos a Nigwai, um vilarejo na zona rual de Jaipur. O objetivo da “viagem” era fazer uma pesquisa com as mulheres do local a fim de registrar de que modo a preferência por filhos homens afeta as condições de vida das mulheres da região. Essa iniciativa é parte de um projeto cujo fim é reverter a desigualdade entre gêneros, possibilitando uma efetiva melhora para as pessoas atingidas pelo problema. Talvez você possa estar pensando, neste instante, que queremos mudar um costume e não temos o direito de fazer isso. Cuidado! Da superfície, a água turva a vista e confunde as formas dos objetos. Por aqui, ainda é comum, em muitas partes, a tradição de casamentos arranjados (algumas meninas ficam noivas aos cinco anos e casam aos doze. Velho, isso é muito delicado, não tenho como fazer chegar até você a profundidade desse assunto. É realmente cabuloso) e esse comportamento tem consequências nefastas na maioria dos casos. Como nesses lugares ainda é exigido o pagamento do “dote”, famílias com recursos financeiros limitadíssimos veem-se numa situação desastrosa. Para elas, o nascimento de uma criança do sexo feminino representa um custo altíssimo. Desse modo, milhares de mulheres optam por fazer uma “seleção” fetal e, para isso, contam com a ajuda de “médicos” e hospitais clandestinos que fazem ultrassom e realizam abortos dos fetos de meninas. É realmente um caso de saúde pública, pois a falta de condições adequadas para a realização desses procedimentos ocasiona uma série de problemas para aquelas que se submetem a essa situação. O trabalho da CECO é promover a conscientização nesses locais e tentar reverter um quadro gravíssimo, que é um típico retrato de como os direitos humanos são imprescindíveis para nós.

Desculpe-me pela seriedade do tema, mas eu vim aqui para ser voluntário em programas de desenvolvimento pessoal e ajuda humanitária, não para “turistar”. Conquanto, descreverei agora a arriação que foi a pesquisa. Se você pensa que o brasileiro manga muito dos gringos, vou lhe dar a oportunidade de rever seus conceitos.

Quando chegamos à vila para fazer as entrevistas, TODAS as crianças nos cercaram. Foi uma das coisas mais lindas da minha vida aquele primeiro contato. Não podíamos nos comunicar verbalmente, pois meu intensivo em Hindi (isto é, observar a galera conversando no busão) ainda não surtiu efeito. Mas eram tantos sorrisos e novidades que, num instante, a desconfiança evaporou. As entrevistas demoraram bastante, já que as moças não sabiam ler e falavam rajastani, um dialeto da região. Assim, primeiro as meninas liam as perguntas, então Depa tentava se comunicar em Hindi e, se não desse certo, uma senhora que havia nos acompanhado traduzia o que faltava. Esse tipo de trabalho só é possível através da ajuda das cooperativas parceiras da CECO, que nos informam sobre os problemas mais graves e promovem o desenvolvimento econômico nesses lugares.

Enquanto as mulheres eram entrevistadas (e ficavam perguntando por que Lee não usava brincos ou esfregando a pele dela pra ver se a cor branca era tinta), eu fui soltar pipa com a criançada a fim de distraí-los, evitando o crowdeamento na pesquisa. Para mim, que nem gosto de menino pequeno (só menos do que Michael Jackson), foi A FARRA. Sinceramente, levei um piau da galera e fui “homilhado” no quesito manobras ousadas. Às três da tarde (começamos às dez da manhã), encerramos as atividades e voltamos para a cooperativa. Lá ficamos à espera do motorista da ONG, que conduzia o carro com a suavidade de quem tinha acabado de assaltar um banco e fugia da SWAT.

Ao largar do serviço, peguei um carona com Jay, economista de 23 anos que trampa comigo na CECO. Que cara fuderoso! Lembrei-me imediatamente de Pipo e Zaca (dois otários que moram no meu coração, pagando um aluguel irrisório). Assim como os dois, ele teve a oportunidade de morar fora e criar uma consciência do elevado grau de urbanização e civilidade existente em países de primeiro mundo. Mas para Jay, a despeito do deslumbramento que viver em Londres causa na galera, esse período foi morgado, pois o temperamento dos ingleses (generalizando mais uma vez) é bem mais frio do que o dos indianos ( e dos brasileiros, primos de segundo grau da turma deste lado do mundo). A casa dele é I-RA-DA. Fica em Malvya Nagar, um barro descolado (hahay, sempre quis usar esse termo ¬¬), e tem uma vista encantadora. O pai dele é um alto funcionário do governo, por isso, depois de ser apresentado ao cafofo, fui deixado, por um MOTORISTA, em casa (eu sei, tenho que praticar o desapego, mas o único motorista que me leva a algum lugar no Brasil é o condutor do CDU/CAX/Boa Viagem). Assim que cheguei, o pessoal me avisou que Sami (eu escrevi errado no post anterior) queria falar urgentemente comigo. O cara iria fazer um jantar em casa e me intimou a participar. Como sou enjoado para comer (Ironia: recurso linguístico utilizado para se dizer o contrário daquilo que se comunica), topei na hora. Peguei um Rickshaw (aqueles táxis que parecem uma motoca com cabine) e fui sozinho à casa dele.

Sami mora na parte muçulmana de Jaipur, lugar onde a cidade começou e onde ficam os primeiros portões da cidade. Na casa dele, que tem mais de duzentos anos, estão enterrados os patriarcas da família. E a propriedade tem uma MESQUITA dentro dela. Isso é comum aqui, mas eu sou matuto, criado nas brenha, não conseguia segurar minha surpresa e encantamento. Saímos para comprar Roti, um pão típico dessa parte do país (parece pão sírio, mas é mais gostoso) e eu não conseguia fechar a boca diante dos restaurantes espalhados pela vizinhança. São tantos cheiros, tantos sabores, que o sujeito fica deliciosamente atordoado. Por ser o centro velho da cidade, é meio diferente do resto da capital, é mais humilde. Só que eu venho do subúrbio, dessa feita, me sentia na CDU ali.

De volta a casa, Sami foi me mostrar os anexos do imóvel. Nesse momento, eu vi o poço utilizado para acumular água, nos períodos de chuva, vi o mausoléu da família e a mesquita. Não sabia, mas os muçulmanos (pelo menos aqui) também creem em espíritos. Sami me mostrou onde eles habitam e eu, mesmo me cagando de medo, tentei um contato de leve. Ainda bem que a galera tava dormindo e não veio falar comigo. Conversando seriamente agora: deixei de ser religiosos há quatro anos. Fui muito católico durante quase toda a minha incipiente vida. Mas ao entrar neste lugar, senti uma emoção inexplicável e, pela segunda vez na minha vida, chorei em um local sagrado. É, meu chapa, não entendi até agora o que se passou, mas posso garantir a você que algo muito forte me atingiu naquela hora. Talvez todo o amor e respeito que aquela família tem pelos antepassados tenha se convertido em energia ali. Nunca vou saber. Apenas senti uma alegria violenta e deixei as lágrimas correrem silenciosamente enquanto voltava meus pensamentos para os meus entes, de sangue e de afeto.

O jantar foi preparado por Mohsin, cozinheiro profissional que trabalhou por três anos em Délhi. Além dele, estavam presentes T, um chegado que trabalha num call center, e Martina, a polonesa que mora com a gente na casa dos estudantes. Ambos, Mohsin e T, se tornaram meus amigos assim que os conheci. Isso é FODA! Mais uma vez, ofereça o seu respeito a alguém e você será respeitado de igual forma. Bem, voltando à janta, os meninos haviam organizado o famoso churrasco na laje. Não era churrasco, claro, é só uma força de expressão. Como não sabiam que eu não como carne (é, querido leitor, há três meses virei um “ET”, segundo o pessoal da “firma”), preparam um frango (Korna é o nome da delícia. Ei, mais não é uma pessoa, por favor. Você sabe que eu não falo sobre meus hábitos sexuais por aqui) de outro mundo. Entupido de temperos, minunciosamente manejado (para não quebrar as partes durante o cozimento), e com um molho violento, o prato era um presente dos deuses, ou melhor, de Alá. Não recusei, pois isso é uma ofensa na Índia (e para mim também, de verdade). Há muito tempo, não é segredo para você que eu sou apaixonado por cozinha. Modéstia parte, poderia viver vendendo cachorro-quente tranquilamente. Por prezar tanto pelo preparo de um prato, considero que recusar comida é recusar amor. Comemos “di cum fôssa”, “valenu”. No final, rateamos os custos, pois a comilança foi forte e a fartura, intensa. A única coisa da qual senti falta no dia foi não ter falado com Ketan. Mas mesmo assim, não deixei de aprender algo com ele (o cara não para de me dar lições de vida inacreditáveis). Lendo uma mensagem dedicada a mim, entendi a seguinte coisa: você não precisa escutar os conselhos dos seus familiares. Apenas os ame verdadeiramente.

Vou me despedir, pois tenho de repousar para não adoecer mais ainda no ano novo. Deixo com você uma saudade, um abraço e um pedido: transmitam às minhas mães todo o amor que eu sinto por elas. Para tanto, faça a seguinte coisa: ligue para elas, primeiramente, contando sobre meus relatos. Depois, diga a sua mãe que nada é mais importante para você do que a pessoa que lhe deu a vida. Obrigado pelo apoio e até breve.

14 comentários:

  1. Mais uma vez estou boquiaberta com seus relatos e principalmente com a maneira que você os descreve,e, finalmente,acabei em lágrimas com a parte das mães...Aurora e sua outra mãe são muito abençoadas em lhe terem!Grande bjs!! Cris

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  2. Ver o homem que conheci ainda menino,voltado para o trabalho humanitário e repassando tantas experiências me enche de orgulho!!Parabéns Barros!! Abçs, Beto

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    1. Ver o homem que, por tantas vezes, me orientou e serviu de espelho para a minha formação, me elogiando desse jeito só me faz querer dizer uma coisa: Amo você, seu "canalha'!

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  3. chorei lendo isso aqui. estou muito feliz por tu e nem sabia que tu ías pra índia. espero que você aproveite bastante e volte, ainda mais, cheio de amor.

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    1. Que fuderoso, Milena! Não achei que conseguiria atingir tão forte assim as pessoas. Quando vc tiver tempo, pega um Dois Irmão-jaipur e chega por aqui, vai ser o pipoco! Cheiro

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  4. porra....tu és o cara.q coisa linda, meu irmão.

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  5. Eu tô sempre em contato elas Nêgo, rlx que suas notícias sempre chegam.

    =***

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  6. É muito difícil mudar o plano de fundo, ou tu não lê os comentários??

    Abraços cduvarzenses!

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  7. Os indianos têm uma energia massa, né não?? Se tem algo que eu sinto falta na India é das pessoas... aproveita muito esses momentos!!!

    Dan, tem uma mulher chamada Ruchira Gupta que fundou a Apne Aap em 2002 e tem feito um trabalho fantástico de combate ao tráfico sexual (uma das consequências dessa questão tão delicada e foda do sexo feminino na India). Fiz um post sobre isso e divulguei um documentário (fortíssimo) produzido por Walter Astrada, chamado "Indesejadas". Dá uma olhada! O link é esse aqui: http://in-ter-actions.blogspot.com/2011/01/undesired-by-walter-astrada.html

    xêru bem grande!

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    1. Eita, já vi que, em Março, vamos sentar pra tomar uma imoralmente gelada e conversar até o sol raiar. Vou pesquisar sobre essa figura e perguntar a galera daqui. Muito obrigado pelos comentários, mas, na nossa amizade, eu é que sou seu fã!! Cheiro e até logo

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  8. Rola um frango desse pra viagem?!

    Deve ser muito massa um local com tanta diversidade étnica, cultural e religiosa (e isso pq vivemos no Brasil que é uma mistura só).

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    1. Porra, a ANVISA vai embaçar, mas posso ver isso aí... Aqui é massa, romerinho, um mundo dentro de um país! Aquele abraço

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    1. Eita que agora eu fiquei besta! Um cheiro, coisa linda! E manda outro gigante pra Catarina e pra Ju. (um pra cada, pois não gosto de economizar nos "xero"

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